A Questão Da Doação De Órgãos Na Ètica Cristã

por Rev. Valdir Paixão

 

A chegada de um novo ano trouxe aos brasileiros e brasileiras não somente a esperança e expectativa de dias melhores, como também a convivência com uma nova lei: "A Lei de Doação de Órgãos" - esperança para alguns que a anos veêm seus nomes em gigantescas listas de espera para um transplante e medo, receios e indagações por parte de outros.

Uma dessas indagações, ainda que a princípio demonstrando uma tremenda ingenuidade com respeito à questão, chegando a adentrar às fronteiras do engraçado, me fez refletir um pouco. Refiro-me a uma entrevista jornalística onde uma senhora, ao ser interpelada sobre sua posição pró ou contra a nova lei, responde enfática e temerosamente: "Sou contra! Como a gente vai entrar noutra vida sem uma parte do corpo?". Na verdade, a temerosa dúvida desta senhora expressa uma preocupação religiosa de milhares de brasileiros, pouco orientados sobre o tema.

Certamente uma pessoa que doa um de seus órgãos ou vários deles não corre o risco de entrar no Além deformado no seu ser. Na impossibilidade de uma abordagem bíblica mais ampla, optamos por um texto mais claro e trabalhado sobre a questão do corpo na ressurreição, I Co 15:35-51:

"Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam? Insensato! O que semeias não readquire vida a não se que morra. E o que semeias não é o corpo da futura planta que deve nascer, mas um simples grão de trigo ou de qualquer outra espécie. A seguir, Deus lhe dá corpo como quer; a cada uma das sementes ele dá o corpo que lhe é próprio. Nenhuma carne é igual às outras, mas uma é a carne dos homens, outra a carne dos quadrúpedes, outra a dos pássaros, outra a dos peixes. Há corpos celestes e corpos terrestres. São, porém , diversos o brilho dos celestes e o brilho dos terrestres. Um é o brilho do sol, outro é o brilho da lua, e outro o brilho das estrelas. E, até de estrela para estrela há diferença de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos mortos; semeado corruptível o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível, ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força; semeado no corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual Se há um corpo psíquico, há também um corpo espiritual. Assim está escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente, o último Adão tornou-se i espírito que dá a vida. Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual vem depois. O primeiro homem tirado da terra é terrestre. O segundo homem vem do céu. Qual foi o homem terrestre, tais são também os terrestres. Qual foi o homem celeste, tais serão os celestes. E, assim como trouxemos a imagem do terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste. Digo-vos, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados..." (Bíblia de Jerusalém)

O texto acima é todo estruturado mediante idéias contrárias (antagonismos) em que sobressaem as expressões: "corpo terrestre" e "corpo celeste" cada qual com características diferentes ( corruptível x incorruptível, fraqueza x força; desprezível x reluzente de glória; natural x espiritual) . Isto quer dizer que este corpo é essencialmente e qualitativamente diferente que o corpo da ressurreição. Embora ambos sejam corpos, cada qual deve ser visto como dado por Deus para circunstâncias particulares. No momento presente, este corpo sofre , é assolado por enfermidades, fraquezas e é exposto, cotidianamente, à mortalidade; é corpo transitório, passageiro, "bolha-de-sabão". A fé, porém, anuncia a imortalidade de um novo corpo; da fé brota a certeza de que "todos seremos transformados..." (v. 51), pois, é necessário que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade" (v.53).

Temos de ter a percepção de que o corpo que hoje temos (juntamente com todos os seus órgãos) se desfará em "pó" . Não precisaremos deste corpo, nem de seus órgãos. O que transcenderá à realidade da morte é a "alma/espírito" de cada um de nós.

Abrigar esta idéia em nossas mentes nos arremessa para alguns balisamentos éticos:

1. Deus promove o humano e deseja que todos tenham a vida plenamente: qualquer gesto ou atitude em prol da vida deve ser priorizado em nossas agendas;

2. A doação de órgãos deve ser priorizada pelos cristãos não porque uma lei (arbitrariamente) determina, mas porque conscientes de sua vocação humanitária, buscam no altruísmo e na solidariedade elementos motivacionais para se tornarem doadores;

3.Em momentos de difícil tomada de decisão ética é preciso discernir, e optar sempre, em cada situação, por onde há mais vida mais amor e mais liberdade.